Às oito horas da manhã, na rápida passagem de trabalho, o gerente noturno comentara sobre a ocupação de todos os quartos e uma madrugada sem problemas. Ressaltara que a suíte Blue permanecia ocupada por um hóspede frequente, o doutor Antônio Castro.
O gerente diurno trabalhava há apenas dois meses no Motel Colors. A manhã ensolarada transcorreu tranquila. As camareiras, antes de encerrarem seu expediente, avisaram-lhe que o quarto azul não fora limpo e reorganizado. O novo gerente solicitou que uma delas retornasse às duas da tarde, para completar o serviço. Assim que saíram, ele dirigiu-se à suíte Blue e tocou a campainha. Esperou alguns segundos, atento a ruídos que indicassem alguma movimentação no interior do quarto. Nada. Tocou a campainha outra vez, mais uma vez e, por fim, com insistência. Não houve resposta. Movimentou a maçaneta. A porta estava encostada. Abriu-a com cuidado. Deparou-se com o cliente nu, deitado de bruços sobre o lençol de cetim azul.
– Doutor Castro, tudo bem com o senhor? Já estamos no início da tarde.
Nenhuma reação. Deu alguns passos em direção à cama, sentiu um odor forte de urina e percebeu, então, uma mancha violácea sob as coxas do homem despido e inerte. Compreendeu que a situação era grave. Fechou a porta, correu até a recepção e telefonou para o Pronto Socorro. Em seguida, ligou para a Polícia.
A ambulância chegou antes da viatura. O gerente conduziu os socorristas até a suíte. Ao tocarem nas costas do homem, os agentes de saúde perceberam a pele fria. Observaram que os lábios e a língua estavam roxos. Ao virarem seu corpo, se assustaram. Havia sido emasculado, não tinha pênis nem bolsa escrotal. Quando os socorristas se retiravam do motel, o delegado Mendonça chegava. Informado sobre o estado em que a vítima fora encontrada, acionou o IML e ordenou que o gerente o levasse ao local do crime.
Mendonça deparou-se com um ambiente totalmente azul. Paredes, teto, cortinas, quadros, carpete, luminárias, cama, lençóis, fronhas, toalhas, tudo blue, em diferentes tonalidades. A iluminação que incidia sobre a banheira de hidromassagem produzia uma bela variação de tons na água, do azul celeste ao turquesa. O delegado abriu as cortinas e a janela para dissipar o cheiro forte de urina, e a luminosidade da tarde inundou o quarto. Além dos lençóis, nada mais parecia sujo de sangue. A banheira havia sido utilizada. Próximas a ela, estavam duas taças vazias e duas toalhas no chão.
– Quando ele chegou?
– Conforme os registros, às 23 horas. Sozinho. Havia reservado a suíte Blue e também a Purple, aqui ao lado.
– Quantas toalhas são disponibilizadas?
– Meia dúzia.
Havia apenas mais três toalhas azuis no nicho da parede espelhada ao lado.
Mendonça procurou indícios até a chegada da pequena equipe de peritos, a qual fez inspeções detalhadas do ambiente, do cadáver e vários registros fotográficos, mas não encontrou nenhuma pista impactante nessa primeira investigação. O corpo foi removido para o IML, e o delegado ordenou a interdição da suíte até a definição da necessidade ou não de uma nova perícia.
Solicitou os registros de acessos. Na planilha de controle, a caligrafia caprichada do gerente noturno apontava dados sobre hóspedes e atendimentos efetuados na noite de sábado e na madrugada de domingo daquele último fim de semana de setembro de 1988. Todos os quartos haviam sido ocupados, todos os horários de retirada e entrega das chaves estavam anotados. De fato, as suítes Blue e Purple foram previamente reservadas por Antônio Castro. No entanto, nos registros referentes à suíte Purple, constavam ocupação e pagamento feitos por Jairo Pacheco, também advogado criminalista, sócio da vítima e vereador na cidade. Ele estava acompanhado por duas mulheres e um homem. Ao lado da palavra homem, entre parênteses estava anotado o pseudônimo Chonga. O delegado acompanhava uma investigação sigilosa sobre a possível ligação entre os dois advogados e uma quadrilha de traficantes de armas e drogas e sabia que Chonga era Jorge de Souza, michê conhecido e muito requisitado na região.
Os hóspedes ocuparam a suíte Purple às 22 horas. A saída desse grupo foi registrada às 4 horas da madrugada. Consumiram doze garrafas de bebidas destiladas: uísque, gim e rum. Já a suíte Blue fora ocupada por Castro às 23 horas. Foram fornecidas três garrafas de licor Curaçau Blue e uma garrafa de soda.
O delegado solicitou ao gerente que o acompanhasse à suíte Purple. Como o nome sugeria, era quase totalmente violeta, com decoração em nuances que variavam do lilás ao roxo muito escuro. Era ampla, possuía duas camas enormes, duas banheiras de hidromassagem e teto todo espelhado. Tudo já estava organizado, e havia um aroma acentuado de lavanda no ambiente. As camareiras já haviam recolhido bandejas, garrafas e taças, substituído lençóis, fronhas, toalhas e encaminhado todas as peças usadas para a lavanderia.
De volta à recepção, encontraram a camareira que retornava ao trabalho. Informada sobre o assassinato na Blue, sentiu uma leve vertigem e sentou-se em uma poltrona vermelha. Ao perguntarem se limpara a Purple e se notara algo diferente lá, disse que sim, que havia encontrado uma toalha azul entre as outras e que havia percebido a falta de uma das doze toalhas de cor violeta.
O delegado Mendonça voltou a analisar a planilha de registros de acessos. Observou que os nomes do michê e de Castro eram recorrentes. Algumas vezes, hospedaram-se nas mesmas noites, mas nunca houve menção de estarem juntos. Quase sempre, a vítima ocupara a suíte Blue: com acompanhante ora feminino, ora masculino, ora sozinha. Sempre solicitava e consumia a mesma bebida: Curaçau Blue.
Chamou-lhe a atenção, também, a constância da metódica e bela caligrafia das anotações do gerente do turno da noite. Ao retornar a seus registros mais recentes, porém, percebeu que fugiam um pouco de seu padrão. As letras não tinham dimensões tão regulares, e algumas palavras desviavam-se das linhas. Imediatamente, Mendonça solicitou ao gerente diurno o endereço de seu colega, com a intenção de interrogá-lo antes de seu retorno ao trabalho.
O gerente noturno residia em um bairro vizinho, em uma casa de alvenaria antiga e modesta, sem garagem, com pátio limpo e canteiros bem-cuidados. O portão de madeira não tinha fechadura nem trancas. O delegado entrou e caminhou pelo pátio lateral até o quintal, de forma lenta e cuidadosa, sem fazer barulho. Um leve perfume de flores espalhava-se com a brisa fresca. Não havia cães. Havia apenas duas gaiolas penduradas no alpendre, nos fundos da casa, com dois pequenos pássaros em silêncio. Num dos cantos do quintal, atrás de duas bananeiras próximas aos muros que se encontravam, notou que o solo fora recentemente escavado. Agachou-se e sentiu o cheiro da terra úmida e remexida. Não teve dúvidas. Começou a cavar com as próprias mãos. Logo encontrou uma tira de couro. Ao puxá-la com força, conseguiu resgatar uma bolsa. Ao abri-la, encontrou um saco plástico preto e fortemente amarrado. Assim que o rasgou, sentiu um odor fétido e, instintivamente, trancou a respiração. Já um tanto enojado, deparou-se, então, com o cabo de madeira de uma grande faca envolta em uma toalha de banho violeta, encharcada de sangue.
Em seu depoimento, o gerente da noite confessou o crime. Dissolvera uma grande quantidade de tranquilizante em uma das garrafas de Curaçau Blue. Quando desocuparam a suíte Purple, certificou-se de que a vítima não estava lá. Pegou uma das toalhas e dirigiu-se à suíte ao lado. Era ex-padrasto de um jovem cujo suicídio, cinco anos antes, havia abalado a cidade. O rapaz, viciado, prostituía-se por cocaína. Seu fornecedor e abusador era Antônio Castro.
O assassino foi algemado e conduzido a uma cela. O delegado Mendonça permaneceu em seu gabinete, agora só. Um leve sorriso surgiu no canto direito de sua boca. Coincidentemente, o criminoso confesso vestia calça e camisa azuis. A vingança, quase sempre vermelha, desta vez foi blue. Surpreendentemente blue.
DAMASCENO, Elenilto Saldanha. Blue. In FALCÃO, Duda; SPALDING, Marcelo (Orgs.). Navalha, veneno, mistério: contos policiais, de suspense e investigação. Porto Alegre: Metamorfose, 2023.
Disponível para aquisição em:
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