Café passado

Era uma quinta-feira. Acordei, antes do nascer do sol, e fui à cozinha beber um copo d’água. Ao chegar lá, deparei-me com uma pessoa desconhecida, mas estranhamente familiar, a tomar uma xícara de café. Era um adulto jovem, perto dos trinta anos. Também se surpreendeu com a minha presença. Olhamo-nos em silêncio, por algum tempo. Perguntei quem era.

Ele bebeu mais um gole de café. Depois, limpou os lábios com o dorso da mão, olhou-me fixamente e disse:

Eu moro aqui.

Espantou-me sua resposta. Uma nova pergunta veio-me imediatamente à cabeça:

– Como é teu nome?

Ele respondeu:

– Jorge Luís Borges Neto. E o seu?

– Meu nome é Jorge. Jorge Luís Borges – declarei.

O desconhecido sorriu e disse:

– Ah, você foi meu avô. Morreu há uns trinta anos. Esta casa aqui coube-me por herança.

Para disfarçar meu embaraço, dirigi os olhos para a cafeteira vermelha sobre o armário. Só então o cheiro de café passado inundou meu espírito. Quando retornei meu olhar para o intruso, ele me fitava e sorvia o café na xícara amarela de porcelana, a qual segurava com as duas mãos. Ele desviou sua atenção para a toalha de mesa, feita com tecido de estampa quadriculada, como um tabuleiro de xadrez, mas nas cores branca e verde. Depois, depositou a xícara no pires.

– Posso me servir? – perguntei.

Com um leve sorriso no canto direito dos lábios, ele retrucou:

– Sim. A casa é sua.

Sua ironia me afetou. Abri o armário superior e escolhi uma xícara igual à do outro. Devagar, para não acusar meu assombro, transferi o aromático líquido para o recipiente. Ao primeiro gole, reconheci que o café estava no ponto: aroma, sabor e temperatura bem ao meu gosto. Permaneci em pé, não me senti à vontade para sentar à mesa e ficar mais próximo do interlocutor, com os olhos a se cruzarem em um mesmo nível, com o risco de nossos pés se tocarem sob a mesa, por descuido.

– Jovem, se me permites, preciso apontar que esta situação é no mínimo insólita. Como podes ser meu neto, se eu nunca tive filhos? – indaguei.

Sem demonstrar abalo diante de minha inquirição, ele sorveu mais um gole de café. Ao depositar novamente a xícara sobre a mesa, fitou-me e disse:

– É o que ainda pensas, pois morreste com essa certeza. Não geraste filhos com tua esposa; porém, podes afirmar, resoluto, que nunca houve aventuras nas tuas andanças pelo mundo, admirado e aclamado como o grande escritor que foste?

Dessa vez, não consegui disfarçar meu desconforto com tal atrevimento (nem minha dúvida em relação a seu questionamento). Tomei mais um gole de café, balancei a cabeça em desaprovação e despejei o restante do líquido na pia.

– O café está fraco para meu paladar. Também está um pouco morno – declarei, incomodado com minha voz um pouco acima do tom normal.

Para retomar o autocontrole, coloquei um pouco de detergente na esponja e lavei a xícara e o pires. O café, antes despejado na pia, diluiu-se na água espumosa. Não havia mais resquícios visíveis de seu consumo, mas seu sabor agradável permanecia como tatuagem em minha garganta.

Após dois intermináveis minutos de silêncio, enxuguei os utensílios e os guardei no armário onde antes estavam. Sequei também minhas mãos. Ele continuava em silêncio. Seu olhar mirava a xícara, agora vazia, sobre a mesa, e parecia tão vazio quanto o recipiente. Voltei-me a ele, parei a sua frente e disse, com uma forçada firmeza:

– Veja bem. Há um fato extraordinário aqui, mas não me surpreendo. Podes ser parte de um sonho ou delírio, podes ser mais uma personagem que assombra minha ficção, ou até mesmo um espectro fantasmagórico. De acordo com as circunstâncias e os argumentos que se apresentam, tu não existes. Não existes, e não há realidade nesse nosso encontro. Não há nada no passado que o justifique como possível realidade presente.

O visitante contornou a borda superior da xícara com o dedo indicador. Suspirou e, quando me dirigiu seu olhar, percebi que estava confuso e um pouco apavorado. Com a voz um pouco trêmula, redarguiu:

– Senhor, e se tu fores o delírio, o fantasma do passado assombrado por suas angústias? Aliás, como me vês, se a essa altura da vida já eras cego?

DAMASCENO, Elenilto Saldanha. Curta ficção. Porto Alegre: Metamorfose, 2023.

Disponível para aquisição em:

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Foto por George Milton em Pexels.com

Publicado por eleniltosaldanhadamasceno

Sou professor de Língua Portuguesa e de Literatura, escritor, editor, revisor e jornalista. Sou mestre em Letras/Estudos de Literatura, especialista em Literatura Brasileira, graduado em Letras e em Jornalismo. Tenho 57 anos, nasci e sempre vivi em São Leopoldo/RS.

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