Profanação

Era sua primeira vez em Paris, e era inverno. A cidade hibernal estava dominada por duas cores: tonalidades acinzentadas e aquele amarelo arenoso definido como tom “pastel”. A tarde fria e nublada recordava-lhe as solitárias tardes desbotadas e monótonas no rigor do inverno no Pampa. Caminhou uns cinco quilômetros pelo passeio público paralelo ao também obscuro Sena, sob inúmeros galhos de árvores desfolhados, miseráveis. Tentava imaginar os mesmos cenários num clima primaveril, mas a natureza fictícia, com arbustos floridos, um céu azulado e seu reflexo luminoso em um rio mais límpido não se sustentava, pois a cidade estava ali, o momento era aquele, o frio na face despertava para a realidade.

Sem apressar o passo, controlou a ansiedade até chegar ao destino pretendido, a “Île de la Cité”. E eis a catedral virginal diante dele, desavergonhadamente nua e exposta ao seu olhar incrédulo.

Antes de penetrá-la, cortejou-a com atenção plena. Rodeou-a, literalmente, com a excitação obscena de um cafajeste a assediar a menina dos seus olhos. Foram três voltas demoradas pelo seu corpo, para observar o maior número possível de detalhes. Não desviou seu olhar em nenhum momento, não se ocupou em fotografar nada. Desejava registrar todas as impressões na retina e na memória, precisava captá-las sem a exatidão (desumana) do diafragma. Queria ser seduzido e enganado pelas emoções.

Ela sequestrou-o com todos os seus encantos, com seus inúmeros detalhes perceptíveis e despercebidos. Capturou-o como uma meretriz muito hábil, uma sereia inabalável e serena ante mais uma serenata ridícula de mais um pobre mortal. A pureza de virgem faz parte da técnica da prostituta. Numa paixão arrebatadora, o homem torna-se um menino, ou enlouquece a ponto de matar qualquer um que ameace seu monopólio de insanidade.

Cada uma das fachadas da catedral mereceriam um romance, todas elas sendo heroínas ou anti-heroínas diferentes, como se não formassem uma mesma pessoa, um mesmo organismo vivo de pedras seculares. Norte, Leste, Sul e Oeste… e Norte, Leste, Sul e Oeste… e Norte, Leste, Sul e Oeste… e giraria e giraria sem bússolas e sem ritmo, giraria e entonteceria e tropeçaria e cairia ao chão inebriado, sorridente como um louco no exato momento em que descobre a perda da razão e se liberta de si mesmo. Foram apenas três voltas, lentas e mágicas, a circundar a imponente catedral como a orbitar as fronteiras do Universo, imerso em galáxias e constelações de gárgulas, rosáceas, flechas, musgos, estátuas de apóstolos, imagens catapultadas de anjos, homens e demônios numa eternidade empedrada. Naquele momento, teve certeza: se as imagens não têm vida, a fé também deve estar morta. Nesse buraco negro e vazio de crenças, deparou-se também com torres inacessíveis e paredes lisas, espécies de pequenos templos no alto do templo, com a íngreme flecha central no pináculo e outros tantos ângulos agudos em pontas incisivas para tantos arcos imponentes e sombrios. Num fechar de olhos, a catedral virava cemitério. Noutro piscar, transformava-se em manicômio. Precisava mantê-los despertos, muito abertos, para não morrer nem enlouquecer diante de tanto assombro.

Mas, se viesse a morrer ali fora, seria diante da torre larga com a rosácea de vidro sem cores, pois só ali morreria em paz. Quantos símbolos, quantos mistérios, temores e tremores, e a rosácea era o colo da mãe naquela noite longínqua, a acalentá-lo até o sono, quando a caxumba recolheu. Mas não queria morrer ali, precisava ressuscitar a cada instante, e viver essas impressões era tocar a eternidade. Entretanto, os portais da majestosa fachada arenosa amparada pelas torres aleijadas chamavam-no à razão, libertavam-no das sensações incontroláveis suscitadas pelo contato com a pele plúmbea da grande dama nas suas três outras faces. Nos portais, recuperava o fôlego e o chão. Voltava à condição humana ao ver gente esparsa e diversa de todo o mundo a entrar e a sair por ali. Também veio até ali para adentrá-la, e o faria, mas purgou-se três vezes, negou-se três vezes, sacrificou-se, mergulhou em seus céus e infernos. Precisava passar pela catarse e pela overdose, controlar o ímpeto e interromper o gozo precoce, sobreviver. Agora, diante da porta central e ogival da grande dama, caminhava resoluto para penetrá-la com um tesão santificador.

E foi um orgasmo infinito.

Tempos depois, o mundo inteiro também viu Notre Dame incendiar. Mas era primavera.

DAMASCENO, Elenilto Saldanha. Curta ficção. Porto Alegre: Metamorfose, 2023.

Disponível para aquisição em:

https://docs.google.com/forms/d/e/1FAIpQLSfhkox5wdZ_QpgnKvG1tXLB0hDGx_b3fq9mOLuiVwYbcD2l4g/viewform?fbclid=IwAR1P-0uK7ksc64lGiiKPZWMe_F9HmJPu-jR-q9C8enfJVBgde8a9Sk1N4Ks

* Imagem captada pelo autor.

Publicado por eleniltosaldanhadamasceno

Sou professor de Língua Portuguesa e de Literatura, escritor, editor, revisor e jornalista. Sou mestre em Letras/Estudos de Literatura, especialista em Literatura Brasileira, graduado em Letras e em Jornalismo. Tenho 57 anos, nasci e sempre vivi em São Leopoldo/RS.

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