Infanticídio

As estrelas são bonecas que jogaram fora, contra nossa vontade. No entanto, só olhamos o céu à procura de monstros, dos mísseis que incendeiam aldeias e corpos.

Acuados em Rafah, somos exterminados como ratos. Não há mais forças entre as chamas. Jamais haverá. Há mais escuridão em nossos olhos do que em um céu sem bonecas ou monstros. O horizonte está morto.

A perna esquecida nos escombros é banquete de moscas insanas. Eu como lixo, cinzas e pó. Viro pedra. Não clamo, porque Alá é surdo. Há uma revolta muda em meu peito. Se eu sobreviver, ela também explodirá, mesmo que não haja futuro.

Eu, Samir, nunca mais dormi, desde a madrugada fria na qual acordei soterrado. No dia anterior, completei dez anos. Ninguém lembrou disso naquele inferno. Ninguém reabriu os olhos empoeirados, exceto eu. Todos viraram pedras insones, atormentadas pelas moscas insanas que perscrutam e despojam os vermes dos pedaços de corpos.

A boneca de Layla foi jogada fora naquela noite. O corpo de minha pequena irmã foi o único que reconheci entre os entulhos. Completo, mas todo acinzentado, com metade do rosto coberto de sangue. Toquei a mancha espessa, cheirei a ponta do dedo. Fedia como os córregos de chorume que afloravam sob os tantos monturos de cadáveres empilhados à espera da vala comum. Fui eu quem carregou seu frágil corpo até um deles.

Nas semanas seguintes, perambulei sem rumo e sem muro para lamentações. Quando, enfim, comi a pedra, me rendi à morte. Desde então, meu estômago dilacerou-se a cada segundo, na constância da dor coletiva. Nesses dias, aprendi que a morte é mais metódica do que sádica, embora se compraza com a dor extrema das pedras que custam a virar pó. Compreendi que algumas delas tornam-se explosivas, audodetonáveis, pois a consciência sobre as injustiças se torna estopim para implosão de ilusões e explosão de rancor. Também entendi que a morte é coadjuvante nessas crueldades e vinganças perpetradas em nome da paz ou de qualquer um dos tantos deuses des(h)umanos.

Não comia nem bebia já há uma semana quando expeli a pedra. Sangrei por três dias. Morri no quarto, ainda infante, muito antes da possibilidade de explodir vingador. Desisti, porque nem a hera venenosa vinga em chão pisoteado pelo poder – esse sim, protagonista e muito mais sádico do que a morte.

DAMASCENO, Elenilto Saldanha. Infanticídio. In ROCHA, Ânderson (Org.). Brasiliê: coletânea nacional de Literatura – contos 2025. Rio de Janeiro: Articule, 2025.

Foto por Hurrah suhail em Pexels.com

Publicado por eleniltosaldanhadamasceno

Sou professor de Língua Portuguesa e de Literatura, escritor, editor, revisor e jornalista. Sou mestre em Letras/Estudos de Literatura, especialista em Literatura Brasileira, graduado em Letras e em Jornalismo. Tenho 57 anos, nasci e sempre vivi em São Leopoldo/RS.

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