Ulisses
O mito é o nada que é tudo.
O mesmo sol que abre os céus
É um mito brilhante e mudo –
O corpo morto de Deus,
Vivo e desnudo.
Este, que aqui aportou,
Foi por não ser existindo.
Sem existir nos bastou.
Por não ter vindo foi vindo
E nos criou.
Assim a lenda se escorre
A entrar na realidade,
E a fecundá-la decorre.
Em baixo, a vida, metade
De nada, morre.
Mitos são criações coletivas que ultrapassam fronteiras de tempo e espaço. Mitos não morrem nunca, apenas se transformam. Nas relações intrínsecas, contínuas e perenes entre mito e História, a força da preservação de Mnemósine, a memória, prevalece sobre o poder de desgaste de Chronos, o tempo.
Os mitos em torno de heróis sofrem metamorfoses, mas mantêm sua essência. Ulisses, de Homero, é um herói mítico que transcendeu uma época e uma obra e se inscreveu como paradigma de valores humanos na consciência coletiva e, como tal, também se tornou elemento potencialmente determinante dos rumos da História da humanidade.
A passagem do século XIX para o século XX, em Portugal e na Europa, foi um momento de profundas transformações. Portugal passava por um período de grande transição política, da Monarquia para a República. Diante do poderio ameaçador da Inglaterra, perdia suas últimas colônias na África e sofria os efeitos do atraso de sua tradição econômica agrária e pastoril ante a iminente revolução industrial a se alastrar pela Europa e a estender os tentáculos de dominação de uma nova organização de mundo.
Nesse período de decadência e crise, a atmosfera saudosista tomou conta do pensamento intelectual português. Na alma lusitana, enaltecedora constante da memória histórica da nação, aflorou, com toda intensidade, a necessidade de revitalização de valores e heróis do passado. O mito messiânico do sebastianismo ressurgiu como luz no fim do túnel para restabelecer a promessa de assunção de Portugal à sua posição de nação escolhida por Deus para instauração do reino divino. Assim, a sociedade portuguesa mergulhou nos mitos de fundação, em busca de recuperação e fortalecimento de sua identidade.
O início da produção literária de Fernando Pessoa coincidiu com o início da nova ordem política e econômica emergente como consequência da Primeira Guerra Mundial (1914 – 1918), da Revolução Russa (1917) e da afirmação dos Estados Unidos no cenário internacional.
Em sua obra Mensagem, o poema Ulisses retoma o mito do herói grego que, conforme uma lenda, teria fundado Lisboa. Na Antiguidade, Lisboa era conhecida como Olisippo, Olysippo ou Ulysipo, nome atribuído a partir da hipotética fundação da cidade por Ulisses.
Não se sabe a exata origem etimológica desse vocábulo e a época de formação dessa referência. Considera-se, atualmente, que a terminação ippo veio da Língua Fenícia e significava “muralhada” (cidade). Lisboa originou-se de pequenos povoados estabelecidos nos arredores do Rio Tejo, antes de 2000 a.C., os quais funcionavam como entrepostos comerciais para fenícios e gregos. A presença dos fenícios teria originado o vocábulo; a presença dos gregos teria originado a lenda de que Olisippo fora fundada pelo herói (a cidade de Ulisses). Os sarracenos, séculos depois, mudaram o nome do local para Lisabona, do qual surgiu, posteriormente, Lisboa.
O Ulisses de Homero é um herói ideal para o mito de fundação de Portugal. Assim como ocorreu com o protagonista da Odisseia, o apogeu da força épica da nação portuguesa emergiu através das viagens marítimas nas quais cumpriria o plano grandioso determinado pelas forças divinas. Portugal representaria para a humanidade aquilo que o herói grego representava em sentido coletivo, seria a nação-heroica escolhida por Deus para realizar Sua missão.
O Ulisses de Fernando Pessoa apresenta o mito como “o nada que é tudo” e que surge como abstração coletiva criada para fundamentar uma representação de realidade com regras e condutas sociais organizadoras da vida, apaziguar as dúvidas dos seres humanos diante do destino e propor algum sentido àquilo que eles não conseguem assimilar sem sofrimento. De um nada, cria-se a substância para a organização de um tudo, de um mundo real e concreto.
A ascensão de Portugal, representada na primeira seção de Mensagem, intitulada Brasão, reconstitui o mito do herói homérico em personagens marcantes da História portuguesa. Essa temática épica remonta as glórias do passado no contexto decadente do presente e estabelece a projeção desse passado pujante no futuro.
Na Odisseia, Ulisses recordava, constantemente, de sua pátria distante, Ítaca. No poema de Fernando Pessoa, Portugal-Ulisses é a nação-heroica a recordar a pátria que fora. Ambos, o Ulisses de Homero e o Ulisses de Pessoa, empenham-se em recuperar a glória e a felicidade distantes no tempo.
De Ítaca, Ulisses partiu para uma grandiosa missão, na qual enfrentou batalhas e a fúria dos mares. Portugal lançou-se, também, à amplitude de mares e oceanos e enfrentou desafios para cumprimento da missão de evangelização do mundo, vontade suprema de Deus.
Se Ulisses, de Homero, foi bem-sucedido em seus feitos, Portugal o foi também. O herói grego tornou-se modelo de ser humano; a nação portuguesa tornou-se potência mundial à época dessa grande expansão marítima e dos “descobrimentos”. Assim como o mito do herói Ulisses tornou-se universal, Portugal conquistou terras longínquas e estabeleceu sua supremacia no “novo mundo”. Essa fase de apogeu da História lusitana é representada na segunda seção de Mensagem, denominada Mar português.
Já foram mencionadas, anteriormente, as supostas origens da lenda segundo a qual, em suas navegações pelo Mar Mediterrâneo, Ulisses teria aportado em terras portuguesas. Por paráfrase do poema de Pessoa, este Ulisses, que ali aportou (por não ser, existindo), sem existir, bastou. Este, Ulisses, por não ter vindo, criou Portugal, e “Assim a lenda se escorre a entrar na realidade, e a fecundá-la”. O mito sobrepõe-se à História e dá sentido a ela. Portugal nasce como filho do herói Ulisses, fundador de Lisboa.
De certa forma, ao se fundir e confundir-se com o mito, a História de Portugal passa a ser, também, representação dos meios de constituição da própria História humana. Por mais grandiosos que sejam os heróis e suas ações, tudo isso está sujeito ao nada que é tudo, à abstração espiritual da divindade criadora manifestada ou corporificada no plano da criação, no mundo físico. A humanidade é parte do tudo, parte limitada e pequena diante desse nada, imaterial, que determina tudo, “O corpo morto de Deus, vivo e desnudo” de seu caráter onipotente e eterno.
O mito fecunda a História e, ao tornar-se História, parte dele morre. Parte morre, mas o mito permanece vivo, como antítese absurda na razão humana, a qual não se manteria sem essa presença viva do mito como sentido de tudo o que a razão não alcança.
Em O encoberto, terceira e última seção de Mensagem, o mito de Ulisses confunde-se com o mito do sebastianismo. Se o Ulisses de Homero buscou e reencontrou sua identidade ao observar o Hades e ao conversar com seus antepassados, o Ulisses-Portugal de Mensagem precisava também, no momento infernal de crise, resgatar sua identidade no passado para encontrar respostas para o porvir, na expectativa da concretização profética de seu futuro.
Na Odisseia, de Homero, Ulisses retornou a Ítaca. Assim, seu ponto de chegada foi seu ponto de partida. Mensagem segue curso diverso da epopeia, pois termina no ciclo de decadência. A glória ainda há de ser conquistada. A verdadeira glória de Portugal não está no que já realizou, mas no que está por realizar. Está na Utopia do futuro a construir, não mais na memória histórica do passado. Essa é a obstinada visão épica na modernidade, a qual recusa acomodação e imobilismo, apregoa e age pela superação de limites que separam ou impedem se alcançar a (ilusória) perfeição. Nessa visão, o mito ultrapassa a História e estabelece confluência com a Metafísica.
O Ulisses de Fernando Pessoa revela que o mito é mais importante do que a realidade, que o poder vir a ser é o sentido do que é, que as coisas morrem à medida que são.
Náufragos em uma realidade que é mar de dúvidas e tormentas, o mito torna-se tábua de salvação humana. Fernando Pessoa, em seu diário, já confessara: “sinto-me abandonado como um náufrago no meio do mar. E que sou eu senão um náufrago, afinal?”. Todas as solitárias individualidades assumem uma solidária unidade no mito. Nessas circunstâncias, “navegar é preciso; viver não é preciso”; e se o mito prevalece sobre a História, “viver não é necessário; o que é necessário é criar”.
O poeta encarna o Ulisses moderno em busca de sentido e forças para sobreviver à solidão e às agruras da existência. Particularmente, Pessoa pareceu encontrar esse sentido no plano misto entre mito e misticismo.
Sob o arquétipo do mito, Portugal-Ulisses é o grande herói do porvir, situado entre o divino e o humano. Ulisses, o mais célebre herói da Antiguidade, enraizou-se na fundação mítica do heroico Portugal. Para ambos, há um caminho de volta. Em seu caminho, o Portugal futurista apregoado por Pessoa terá a missão de restaurar sua História e criar uma nova humanidade. Eis um novo ciclo de heroísmo. Ulisses e Portugal são heróis à procura de si mesmos e em direção a um destino desconhecido e predeterminado pela vontade divina.
Em suma, nas suas relações com o Ulisses de Fernando Pessoa, o Ulisses de Homero tornou-se pai mítico de uma nova nação e fecundou a essência da alma lusitana, sua essência contemplativa e heroica, sempre saudosa do passado e esperançosa no porvir.
Referências bibliográficas:
HOMERO. Odisseia. São Paulo: Nova Cultural, 2003.
PESSOA, Fernando. Mensagem. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
