As primeiras manifestações literárias gaúchas surgiram na oralidade popular, em lendas, “causos”, cantigas simples e provérbios a retratarem a vida e os valores de nosso povo. Nosso primeiro grande escritor, o pelotense João Simões Lopes Neto, apropriou-se dessas construções orais e as transpôs para a escrita, aprimoradas literariamente através de sua criação autoral.
Nas narrativas de Contos gauchescos e Lendas do Sul, Simões Lopes Neto apresenta um narrador-personagem inesquecível, “o benquisto tapejara Blau Nunes, desempenado arcabouço de oitenta e oito anos, todos os dentes, vista aguda e ouvido fino”, o qual conhece muitas regiões do Rio Grande do Sul, cujas características físicas e geográficas descreve minuciosamente, e demonstra, também, amplo conhecimento sobre fatos históricos e lendários arraigados na memória e no imaginário do povo sul-rio-grandense.
Blau Nunes é um “eu” dotado de uma memória de rara nitidez a recordar e narrar o passado e suas reminiscências. Pode ser classificado como “narrador tribal”, uma vez que é um idoso respeitado por sua história e conhecimento de vida, o qual transmite e difunde a cultura, mitos e valores coletivos às gerações mais jovens. Seus relatos apresentam linguagem tipicamente regional e variantes predominantemente orais, enriquecidas com vocábulos populares e a assimilação linguística de termos do idioma castelhano (os espanholismos). Blau é um narrador autocrático, embora acessível e simpático, e ele próprio é uma representação identitária simbólica do gaúcho, forjada através de discursos ufanistas que enaltecem o heroísmo épico de personagens históricas ou anônimas do povo e que manifestam o senso comum em pensamentos e costumes populares que constituem uma espécie de “filosofia regional”.
DAMASCENO, Elenilto Saldanha. Blau Nunes. Jornal VS, São Leopoldo, p. 16, 30 jun. 2022.
