No final do século XIX, o escritor português José Maria Eça de Queiroz publicou Os Maias, obra-prima do Realismo, um panorama histórico-social da realidade portuguesa representado através do percurso de uma família secular. O autor retrata o seu tempo e a sua nação. Através da história de quatro gerações de uma tradicional família aristocrática, apresenta uma alegoria da nação portuguesa no apogeu do século racionalista, quando a Literatura, em suas estéticas realista e naturalista, absorveu os novos discursos científicos vigentes.
Em Os Maias, Eça de Queiroz apresenta paralelos e contrastes entre família e nação. A família, na obra, representa uma impressionante alegoria da nação portuguesa.
A árvore genealógica dessa família inicia em Caetano da Maia. O ancestral patriarca é um fidalgo rico, descendente da nobreza tradicional, o qual representa o Portugal do século XVIII a se estender pelo início do século XIX. Enquanto a Europa passava por profundas transformações políticas e sociais, Caetano representa a conservação de um regime autoritário e ultrapassado, fundamentado na unidade de poder entre a Monarquia absolutista e a Igreja Católica, o qual se perpetuava em Portugal, através do reinado de D. Miguel.
Seu filho, Afonso da Maia, estabelece um conflito de gerações. Afonso é liberal, maçom, tem elevados valores morais, postura democrática e espírito inovador. Viveu na Inglaterra e reconhece a sociedade inglesa como modelo a ser seguido por Portugal. Afonso representa os ventos renovadores do Liberalismo britânico que atravessaram o provinciano Portugal e inspiraram a promulgação de uma nova Constituição. Afonso simboliza a transformação de Portugal quando a Monarquia absolutista é substituída pela Monarquia constitucional.
Sua esposa, Maria Eduarda Runa, também de origem nobre, é uma fervorosa beata. O matrimônio entre ambos ilustra a manutenção do conservadorismo monárquico tradicional e católico nesse novo regime constitucional influenciado pelo Liberalismo.
Pedro da Maia é o filho desse casal. Criado em meio a conflitos de valores representados pelo casamento dos genitores, tem personalidade fraca, a qual caracteriza a degradação da estirpe genealógica dos Maias e, analogamente, o fracasso de Portugal. Sua morte anuncia, como prolepse, o destino fracassado da nação portuguesa. Por desilusão amorosa, Pedro comete suicídio.
Maria Monforte é a causa dessa desilusão com desfecho trágico. A exótica e bela mulher é filha de um negreiro, de um homem que enriqueceu com o tráfico de escravos. Maria representa, na História portuguesa, a manutenção do modelo econômico de exploração imperialista e escravagista nas colônias transcontinentais. O discurso liberal não se sustenta diante da incoerência da prática desse modelo de exploração econômica. Maria Monforte torna-se adúltera e prostituta de luxo, torna-se objeto de posse de homens. A degradação de sua vida simboliza a degradação aviltante produzia pelo regime colonialista escravocrata, o qual estabelecia o direito de posse sobre vidas humanas.
Da união fracassada entre Pedro da Maia e Maria Monforte, a qual é imagem da união entre a Monarquia constitucional conservadora e o ultrapassado modelo econômico colonialista, nascem dois filhos, os quais são criados separados.
Carlos Eduardo da Maia é criado pelo avô, Afonso da Maia. Carlos Eduardo representa o Portugal da época de Eça de Queiroz, o momento histórico e político denominado Regeneração. Educado por um preceptor inglês, formação que representa a afirmação do Liberalismo, e sustentado pelo avô, figura do Estado monárquico constitucional, Carlos Eduardo é um dandi volúvel, inútil, mas admirado por todos como homem galante e típico gentleman inglês. Todavia, é uma caricatura desse modelo de homem civilizado. Carlos Eduardo é a representação política e social de Portugal ao final do século XIX, é símbolo da aristocracia decadente sustentada pelo Estado a qual sobrevive como parasita social no seio de uma nação estagnada. No Portugal finissecular, essa aristocracia representa o fracasso do pseudoliberalismo português.
Sua irmã é Maria Eduarda Maia. Como sua mãe, Maria Monforte, é uma mulher bela e misteriosa. Chamada pejorativamente de “a brasileira”, Maria Eduarda representa a exploração colonialista a qual perduraria, nas colônias portuguesas, até meados do século XX. Assim como sua mãe, se prostitui, ação repetida e sinalizadora da permanência da exploração colonial para sustento dos caprichos da aristocracia portuguesa corrupta e decadente.
Mesmo com conhecimento de que a amante, Maria Eduarda, é sua irmã, Carlos Eduardo mantém relações sexuais com ela. Mesmo promotora de discurso moderno, liberal e republicano, a aristocracia lusitana mantém o decadente e vil modelo de exploração colonialista. Protagonista do romance, o jovem médico Carlos Eduardo é um herói degradado a usufruir caprichos e interesses particulares, acomodado à dependência de Afonso da Maia, o avô liberal, situação essa representativa da sustentação dos privilégios da elite social pelo Estado.
A perplexidade e a extrema desilusão diante dessa situação revelam-se no seguinte trecho da narrativa:
“O velho escutava com melancolia estas palavras do neto, em que sentia como uma decomposição da vontade, e que lhe pareciam ser apenas a glorificação da sua inércia. Terminou por dizer:
– Pois então façam vocês essa revolução. Mas, pelo amor de Deus, façam alguma coisa!”.
A relação incestuosa entre Carlos Eduardo e Maria Eduarda é metáfora do coito entre a decadência do pensamento liberal e a manutenção do modelo econômico de exploração colonialista. A Regeneração transforma-se em degeneração.
Maria Eduarda, ciente de sua origem, abre mão da herança a que teria direito, mas mantém-se dependente de uma pensão oferecida pelo irmão. Maria Eduarda não deixa de ser uma Maia. Essa relação de submissão e dependência representa a herança política de Portugal nas colônias que se tornaram ou viriam a se tornar nações independentes, nas quais se estabeleceram regimes de governo fundamentados em práticas de exploração e corrupção.
Carlos Eduardo não tem herdeiros. A geração de Eça de Queiroz, a geração de 70 com seus propósitos de transformação política e social, não produz os frutos almejados. Findada a geração varonil dos Maias, finda a esperança de transformações na sociedade portuguesa. Sem filhos, sem frutos, sem alternativas, o fracasso dessa geração consubstancia o ceticismo do escritor português, retratado na obra, e a ideia fatídica de Portugal fadado ao insucesso. Em sua visão crítica realista, Eça de Queiroz se dá por vencido, se reconhece um “vencido da vida”.
Carlos Eduardo da Maia é um proselitista incoerente, um aristocrata a discursar contra o sistema com o qual se locupleta. Suas práticas contradizem frontalmente seus argumentos. Os Maias deixa, a leitoras e leitores, mais esta revelação: não há possibilidade de transformação verdadeira quando ela é proposta por qualquer grupo que usufrua e enalteça seu poder.
Assim como Carlos Eduardo e Maria Eduarda, o poder e a corrupção são irmãos incestuosos.
Referência bibliográfica:
QUEIROZ, José Maria Eça de. Os Maias. Porto Alegre: L&PM, 2005. 2 v.
