Debruçado no guarda-corpo enferrujado da antiga ponte férrea que atravessava o rio, Pedro olhava para a prainha deserta ainda sem acreditar que tudo terminara. Todos os anos comemorava seu aniversário ali. Fosse dia útil ou fim de semana, fosse dia ensolarado ou chuvoso, reservava a data para o reencontro com o rio, seu companheiro desde a infância. Assim, envelheciam juntos. Já há alguns anos a prainha não era mais frequentada pelos moradores próximos, pois suas águas se tornaram turvas e insalubres. Dessa forma, Pedro aprendia com o amigo rio sobre uma velhice acompanhada de abandono e solidão.
Em uma de suas margens, uma pequena faixa de solo arenoso ainda convidava para a aproximação às águas. Contudo, naquela manhã nublada na qual completava 40 anos, ele não teve coragem de retornar à prainha. Escolheu a ponte abandonada, o mirante do pôr do sol de cada aniversário. Naquele instante, mirante de suas lembranças.
Do alto da ponte, Pedro imaginava rever Clara e Santelmo sentados à beira do barranco mais próximo à prainha, a aguardarem algum peixe beliscar as iscas nos anzóis. Santelmo, com sete anos, acompanhava respeitosamente o sacrifício das minhocas e se esforçava para ficar em silêncio, para não espantar os peixes. Essa fora a última cena, a última visão de seus amores.
Agora, um ano depois, naquela ilusória reaparição, pareceram-lhe em paz, fantasmas sem consciência da morte. Aos poucos, seus espectros se confundiram com a vegetação ribeirinha e desapareceram. Pedro olhou para baixo, para a correnteza de águas acinzentadas, e fez sua despedida. Retirou a aliança de ouro de seu dedo anelar pálido e lançou-a ao rio. Não se perdoou e nunca se perdoará por ter se afastado, por desampará-los, por não ter ouvido seus prováveis gritos. Quando retornou, com o feixe de galhos secos para preparar uma fogueira, não encontrou ninguém.
Urrou, animal ferido, à lembrança daquele instante fatídico. A memória das imagens dos corpos inchados e deformados, os quais emergiram após sete dias, a quase dois quilômetros dali, fez com que caísse ao chão, de joelhos. Seu corpo agitou-se em grandes soluços, convulso por muito tempo, até perder as forças e se prostrar sobre os dormentes e os trilhos cobertos de relva.
Passada essa explosão, Pedro ficou a se perguntar se estaria vivo ou já morto. Fechou os olhos e respirou fundo, a aguardar os sinais reveladores do último suspiro, mas, ao inspirar novamente, sentiu-se meio-vivo num nada acontecer. Aos poucos, voltou a perceber o contato incômodo do corpo com os trilhos duros, o cheiro do mato crescido, o barulho manso das águas cínicas, a ausência de forças para odiar o rio traidor.
Foi então que escutou as vozes distantes de seu filho e de sua mulher. Reconheceu a cantiga de roda que ensinara ao seu anjo menino e, num salto, se ergueu e olhou para a prainha. Reviu Clara e Santelmo de mãos dadas, a circularem e a entoarem: “Como pode peixe vivo viver fora d’água fria? Como pode peixe vivo viver fora d’água fria?”.
Seus olhos brilharam ao revê-los assim, a cantarem contentes. “Como poderei viver? Como poderei viver? Sem a tua, sem a tua, sem a tua companhia. Sem a tua, sem a tua, sem a tua…”
Ninguém viu o peixe vivo mergulhar nas águas turvas e frias do seu último rio.
DAMASCENO, Elenilto Saldanha. Peixe vivo. In SPALDING, Marcelo (Org.). Contos reunidos 2022. Porto Alegre: Metamorfose, 2022.
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