Chuva fina

Ângelo não dormiu durante a noite. Agora, escuta os sons rotineiros do ritual dos pais antes de saírem para o trabalho. Assim que fecham a porta do apartamento, pula da cama e abre a janela. O dia amanheceu acinzentado, e cai uma leve garoa. Ele veste as mesmas roupas dos dias anteriores. Passa uma água no rosto. Depois, com os dedos trêmulos, abre a mochila de brim, encardida, e confere se está tudo lá. Sim, tudo ok: protetor labial, os apetrechos de alumínio e de silicone, o rolo com cédulas de dinheiro amassadas.

Sai sem comer nada, como sempre. Desce pelo elevador de serviço. Evita a portaria. Desvia pela porta dos fundos. Dirige-se pela lateral do prédio até o portão secundário. Quando alcança a rua, apressa o passo, sem se preocupar com os tênis a se encharcarem nas poças em que descuidadamente pisa. Segue pelo caminho de sempre, o qual poderia percorrer até de olhos fechados, se pudesse cerrá-los naquele momento.

Quase uma hora de caminhada até o Bairro da Luz. Próximo ao paraíso, reconhece outros em peregrinação ao mesmo fluxo. Caminha mais rápido ainda. Olha para trás. Tá limpo! Dobra a esquina e suspira. Agora sim, está no seu território. Mesmo com a chuva, já está tudo a mil. Procura o seu canto, o Palquinho, um tablado de madeira já meio apodrecido pelo acúmulo de lixo. A roda já está formada. Um parça mostra o bloco. Ângelo abre a mochila, alcança-lhe uma nota suja, e a treta está feita. Passa a manteiga nos lábios. Depois, com esforço, consegue encaixar a piteira de silicone no cachimbo de alumínio e, quase já sem o controle do movimento dos dedos, faz a pedra acender. Traga fundo. Traga como se o mundo e a vida fossem acabar. A fissura está atendida. Finalmente, fecha os olhos. Quer morrer assim, sentindo aquela brisa, aquela paz longe de casa.

À medida que fuma a pedra, a paz se esvai e as sombras incertas se aproximam, como sempre. Reabre os olhos, agora vazios e acinzentados como o dia. Esquenta o cano de alumínio e a casinha do cachimbo. Ainda pode tochar, aproveitar a rapa. A borra ferve, e ele inala a fumaça. As sombras transformam-se naquelas figuras com rostos tristes, as mesmas radiações de quase sempre. E a chuva fina escorre pelo canto dos olhos.

DAMASCENO, Elenilto Saldanha. Chuva fina. In YAMASHIRO, Olga; JÚNIOR, Ovídio Poli (Orgs.). Prêmio Off Flip de Literatura 2022: conto. Paraty: Selo Off Flip, 2022.

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Foto por Aidan Roof em Pexels.com

Publicado por eleniltosaldanhadamasceno

Sou professor de Língua Portuguesa e de Literatura, jornalista e iniciei, em 2020, minhas atividades como escritor em formação e em ação. Sou mestre em Letras/Estudos de Literatura, especialista em Literatura Brasileira, graduado em Letras e em Jornalismo. Tenho 54 anos, nasci e sempre vivi em São Leopoldo/RS.

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