Traços estilísticos da linguagem em “Reinações de Narizinho” (2)

Reinações de Narizinho é uma obra recheada de criatividade e bom humor, os quais incentivam o gosto pela leitura no público infantil. A personagem Emília sintetiza bem essas duas características estilísticas na obra, além de representar o próprio processo de aquisição e desenvolvimento da linguagem infantil. À medida que descobre as palavras, Emília inventa novos sentidos para elas e ainda constrói usos próprios e neologismos. Ao nomear seres e objetos, Emília faz da linguagem um maravilhoso instrumento para a compreensão do mundo associada à imaginação.

Os seguintes trechos destacam Emília a exercer seu dom de “inventadeira de palavras e botadeira de nomes”:

“ – Só acordei quando o Doutor Cara de Coruja…

Doutor Caramujo, Emília!

– Doutor CARA DE CORUJA. Só acordei quando o doutor CARA DE CORUJÍSSIMA me pregou um liscabão.

Beliscão emendou Narizinho pela última vez, enfiando a boneca no bolso. Viu que a fala da Emília ainda não estava bem ajustada, coisa que só o tempo poderia conseguir” (Narizinho arrebitado – VII A pílula falante).

“ – Lá pararam à espera do fazedor de discursos.

Orador, Emília!

– FAZEDOR DE DISCURSOS. Veio ele, de discursinho debaixo do braço, escrito num papel e leu, leu, leu que não acabava mais” (O Sítio do Pica-Pau Amarelo – II O enterro da vespa).

“ – Estou vendo uma coisa esquisita lá na frente! Um monstro com cabeça de porco e ‘peses’ de tartaruga!” (O Sítio do Pica-Pau Amarelo – XII A volta).

Velha dugudeia, diga-me, se for capaz, se há por aqui uma pastora assim, assim, e de bom coração” (O Gato Félix – II A história da Emília).

“ – Antes de mais nada, preciso consertar Vossa Senhoria, pois onde já se viu um cavalo sem rabo? Vou arranjar para Vossa Cavalência um lindo rabo de galo, muito mais na moda que esses rabos de cabelo com que os cavalos nascem, está ouvindo, Senhor Barão Cavalgadura Cavalcanti Cavalete da Silva Feijó?” (O irmão do Pinóquio – II O pau vivente).

“ – João Faz-de-Conta é o melhor nome que acho para este boneco.

Por quê?

João, porque ele tem cara de João. Todo sujeito desajeitado é mais ou menos João. E Faz-de-Conta, porque só mesmo fazendo de conta se pode admitir uma feiúra desta. Faz de conta que não é feio. Faz de conta que não tem ponta de prego nas costas. Faz de conta que…

(…) Todos acharam a mesma coisa e classificaram a boneca como a melhor ‘botadeira de nome’ do sítio” (O irmão do Pinóquio – V – João Faz-de-Conta).

“Depois do concurso para a fabricação do irmão de Pinóquio houve no sítio de Dona Benta outro concurso muito engraçado – o concurso de ‘quem tem a melhor ideia’. Quem venceu foi a Emília, com a sua estupenda ideia de um ‘círculo de escavalinho’. Dona Benta, que era o juiz do concurso, achou muito boa a lembrança, mas deu risada do título.

– Não é ‘círculo’, Emília, nem ‘escavalinho’. É circo de cavalinhos.

(…) “ – Já que a senhora ‘faz tanta questão’, fica sendo circo de escavalinho.

Dona Benta ainda insistia, dizendo que o diminutivo de cavalo é cavalinho e que portanto escavalinho era asneira. Mas a boneca não se deu por vencida.

– É que a senhora não está compreendendo a minha ideia – explicou. – Escavalinho é o nome do diretor do circo, o célebre Senhor Pedro Malasarte Escavalinho da Silva, está entendendo?” (O circo de cavalinhos – I A operação cirúrgica).

“ – Lua cheia ou minguante?

Acho que quarto crescente fica melhor.

Emília bateu o pé.

Quarto não quero. Quero sala crescente!” (O circo de cavalinhos – III O circo).

“Essa pantomima tinha sido imaginada por Pedrinho de um certo jeito mas como todos metessem o bedelho saiu uma mexida completa. Emília fez questão de dar o título – e deu um título muito sem pé nem cabeça: O PANTASMA DA ÓPERA.

– Phantasma, Emília – corrigiu Narizinho. – PH é igual a F, como você pode ver nesta caixa de ‘phosphoros’. Ninguém lê PÓSPORO.

Sei disso muito bem replicou a boneca. Mas quero que seja Pantasma, senão saio da companhia e não empresto o meu cavalinho, nem o meu carro, nem o meu tostão novo.

Como é birrenta! A gente quando quer uma coisa precisa dar as razões e não ir dizendo porque quero. Isso só rei é que faz.

– Mas eu tenho minhas razões – tornou Emília. – Pantasma nada tem que ver com fantasma. Pantasma é uma ideia que tenho na cabeça há muito tempo, de um bicho que até agora ainda não existiu no mundo. Tem olhos nos pés, tem pés no nariz, tem nariz no umbigo, tem umbigo no calcanhar, tem calcanhar no cotovelo, tem cotovelo nas costelas, tem costelas no…

(…) – Chega! berrou a menina tapando os ouvidos. Não precisa contar o bicho inteiro. Fica Pantasma, como você quer. Mas essa ÓPERA, que é?

 – Não sei. Acho ópera um nome bonito e por isso o escolhi. Se você faz muita questão, eu tiro o ER e fica o PANTASMA DA OPA. É o mais que posso fazer.

Os dois primos se entreolharam.

Acho que ela está ficando louca cochichou Pedrinho ao ouvido da menina” (O circo de cavalinhos – III – O circo).

Outro recurso muito usado pelo autor é o emprego de onomatopeias. Além de criatividade, representam a percepção infantil através de relações entre sons e ideias ou conceitos. A própria leitura adquire caráter sinestésico, através da associação visual entre uma representação gráfica e a percepção sonora de um elemento da realidade.

Eis dois trechos, selecionados na obra, nos quais as onomatopeias são utilizadas pelo escritor:

“Justamente naquela semana as jabuticabas tinham chegado ‘no ponto’ e a menina não fazia outra coisa senão chupar jabuticabas. Volta e meia trepava à árvore, que nem uma macaquinha. Escolhia as mais bonitas, punha-as entre os dentes e tloc! E depois do tloc, uma engolidinha de caldo e pluf! – caroço fora. E tloc, pluf – tloc, pluf, lá passava o dia inteiro na árvore.

As jabuticabas tinham outros fregueses além da menina. Um deles era um leitão muito guloso, que recebera o nome de Rabicó. Assim que via Narizinho trepar à árvore, Rabicó vinha correndo postar-se embaixo à espera dos caroços. Cada vez que soava lá em cima um tloc! seguido de um pluf! ouvia-se cá embaixo um nhoc! do leitão abocanhando qualquer coisa. E a música da jabuticabeira era assim: tloc! pluf! nhoc!  – tloc! pluf! nhoc! …” (O Sítio do Pica-Pau Amarelo – I As jabuticabas).

“ – É hora! – disse o barão erguendo a arma à cara. Fez a pontaria e – blef! – o gatilho deu em seco.

   (…) O menino tirou o paletó, arregaçou a manga da camisa, girou três vezes no ar o punho cerrado e por fim – bam! deu tal murro que quase arranca o olho do barão fora da órbita. Mas valeu! Saiu uma faísca linda, que penetrou feito um corisco dentro do ouvido da rama e inflamou a pólvora. Bum! Um tiro reboou, daqueles que levam segundos ecoando por montes e vales. E certíssimo! … A bala deu bem no cabresto, cortando-o como se fosse navalha. O burro imediatamente começou a cair com velocidade crescente, até que, tchibum! – mergulhou no oceano” (O pó de pirlimpimpim – IV – Um soco histórico).

São encontrados ainda, no texto, os seguintes usos onomatopeicos:

Zás (movimento rápido), lept! lept! (chicotadas), craque (espelho a rachar), toc, toc, toc! (batidas na porta), rom, rom, rom (ronco de porco), coin! coin! coin! (berros de porco), zuct! (puxão em vara de pescar), tchibum! (queda na água), pá! pá! pá! (vassouradas), pac, pac, pac (cavalo a cavalgar devagar), pá-lá-lá, pá-lá-lá! (cavalo a cavalgar velozmente) nhem, nhim (ringido), pen, pen, pen (batidinhas em vidraça), zzzit! (voo de libélula), trrrlin, trrrlin (esporas), tzzsiu (assobio de tiziu), prrr! (voo de beija-flor), ba, plaf! (batida de porta), tec, tec, tec (passos da Emília), plaft! (queda no chão), nhen, nhen, nhen (tangido de carro de boi), pã! (machadada), fugt! (enfiada de faca em porco), pluf! (olhos de Emília a arrebentarem), ahhh! (bocejo), zunn! (voo de vespa), bum! bum! bum! (foguetes), blem, blem, blem (batidas numa enxada), zupt! (salto), glut, glut, glut (engolir, beber água), cocoricocó (canto de galo), pluf! (pulo de árvore ao chão), plaft! (pedrada), fiuun (zunido).

A onomatopeia é representada, frequentemente, com três repetições da palavra, e o autor revela a intencionalidade desse emprego nos seguintes trechos:

“Rabicó raspou-se gemendo três coins…” (O Marquês de Rabicó – III O noivado de Emília).

“A cigarra obedeceu, batendo três toc-tocs” (Pena de papagaio – VI A formiga coroca).

Ainda como expressão onomatopeica, têm-se os seguintes chamamentos de animais: xuque, xuque, xuque (porcos), pshuit, pshuit… (gato).

A criatividade infantil é revelada, também, na utilização de outras linguagens lúdicas: a linguagem do “pisco” e a linguagem do “pê”.

“Dona Benta estava ensinando Pedrinho a cortar as unhas da mão direita quando Emília apareceu na porta e piscou para ele com os seus novos olhos de seda azul, feitos na véspera. Pedrinho respondeu a essa piscadela com outra, que na linguagem do ‘pisco’ (como dizia a boneca) significava: ‘Que há de novo?

  – Narizinho está chamando! – respondeu Emília, tão baixinho que Dona Benta nada percebeu.

Para quê? – indagou o menino ainda na língua do ‘pisco’ ” (Cara de Coruja – I Preparativos).

“Enquanto isso Pedrinho achou jeito de lhe dizer na linguagem do P, que os macacos não entendem:

– Apavipisepe Pepenipinhapa quepe espestapamospos naspas upunhaspas despestapa hoporrenpendapa mapacapacadapa.

(Avise Peninha que estamos nas unhas desta horrenda macacada.)

“ – Simpim – respondeu Emília disfarçadamente …

  (…)

– Tepenhapa papacipienpenciapia quepe Pepenipinhapa nãopão tarpardapa – gritou ela.

   Nem bem acabara e já ouviu um galo cantar longe – Cocoricocó!

Épé epelepe – gritou de novo a menina, batendo palmas” (Pena de papagaio IX – Prisioneiros; X Peninha não falha).

LOBATO, José Bento Renato Monteiro. Reinações de Narizinho. São Paulo: Círculo do Livro, 1988.

Foto por Victoria Borodinova em Pexels.com

Publicado por eleniltosaldanhadamasceno

Sou professor de Língua Portuguesa e de Literatura, jornalista e iniciei, em 2020, minhas atividades como escritor em formação e em ação. Sou mestre em Letras/Estudos de Literatura, especialista em Literatura Brasileira, graduado em Letras e em Jornalismo. Tenho 54 anos, nasci e sempre vivi em São Leopoldo/RS.

2 comentários em “Traços estilísticos da linguagem em “Reinações de Narizinho” (2)

    1. Obrigado pela leitura e pela apreciação do texto, Luís Alberto. Reli “Reinações de Narizinho” nos últimos dias (e me diverti muito), para escrever esta série. Acredito que muitas crianças e pré-adolescentes como nós, da geração que assistiu à primeira versão televisiva do “Sítio do pica-pau amarelo”, se também buscaram os livros nas bibliotecas escolares, tiveram grandes experiências para se formarem como futuros e bons leitores. Um abração!

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