A gente se conheceu no secundário, no Colégio Rui Barbosa, em 66. No ano seguinte, com as amizades consolidadas por afinidades e talentos musicais, montamos nossa banda de rock and roll, Os Barbosas. Só tocávamos Beatles. Ensaiávamos aos sábados e domingos, na residência de Xande, um casarão recentemente construído, mas ocupávamos um galpão ao fundo do quintal.
Éramos quatro, como os rapazes de Liverpool: Xande na bateria, Bira no contrabaixo, Juca na guitarra solo e no vocal, e eu na guitarra base. Logo, a banda ganhou corpo, cara e coragem. Começamos a tocar em reuniões dançantes realizadas em garagens, em festas de aniversário de colegas da escola. Seu Olavo, pai do baterista e gerente da agência local do Banco do Brasil, era nosso grande apoiador e uma espécie de empresário. Investiu na aquisição de bons instrumentos e equipamentos, descolou espaços para realizarmos shows em boates, clubes sociais e salões paroquiais. A banda precisou providenciar registro na Ordem dos Músicos e virou pessoa jurídica envolvida com contratos, cachês e conta corrente específica no Banco do Brasil, é claro.
O ano do “boom” foi 68, quando se tornou frequente tocarmos em clubes de várias cidades da região. A cada fim de semana, fazíamos um ou dois shows. Em todos eles, os salões ficavam repletos. Porém, depois da bonança, surgem novas tempestades. O sucesso artístico veio acompanhado do fracasso escolar. No último ano do colegial, com exceção de Bira, fomos todos reprovados.
Assim, 69 já começou como o ano da crise. Meus pais exigiam-me concentração total nos estudos. Para permanecer na banda, cumpri a promessa de não haver nenhuma nota vermelha no boletim. A família de Xande se mudaria no final do ano; o pai seria transferido para assumir uma gerência regional no Ceará. Juca entrou numa de querer tocar outras coisas: Rolling Stones, Bob Dylan, Neil Young, Mutantes. E a situação se complicou ainda mais no meio do ano, pois Bira, sempre tão responsável, não se fazia mais presente em todos os ensaios. Tinha outras atividades e compromissos, mas falava pouco sobre isso. Em seu primeiro semestre no curso de Agronomia na UFRGS, enturmou-se com o pessoal do diretório acadêmico. A partir de então, percebemos sua transformação. Não sorria mais, parecia estar sempre com pressa e preocupado. Por vezes, se irritava nos ensaios, nos xingava de alienados, declarava não querer se tornar fantoche do mercado cultural e dizia para encontrarmos outro baixista. No entanto, permanecia no grupo, pois seu irmão, Dorval, era nosso motorista e precisava desse bico aos fins de semana. Dodô, cinco anos mais velho do que nós, largara os estudos para encarar o batente e casar com a namorada adolescente que engravidara. Seu Olavo comprara uma Kombi para a banda, e Dodô era nosso motorista e ajudante na montagem e desmontagem dos equipamentos. Só assim, coitado, podia participar das festas frequentadas pelos jovens de sua idade.
Parece incrível, mas dentro daquela Kombi cabia de tudo: cinco rapazes, a bateria Ludwig completa do Xande, o contrabaixo Berger do Bira, a guitarra Giannini Supersonic do Juca, a minha guitarra Snake de doze cordas. Além disso, carregávamos uma parafernália de equipamentos: amplificadores, caixas de som, pedestais, microfones, pedais, um emaranhado de cabos e alguns rolos de lona, com pinturas de imagens abstratas e psicodélicas, os quais eram usados como painéis cenográficos.
No final do ano, os três repetentes concluíram o secundário, mas a festa de formatura foi em homenagem a Helouise, aluna do curso normal e filha de um tenente-coronel do Exército. Naquele sábado à tarde, quando Bira soube que a apresentação à noite ocorreria no Grêmio dos Subtenentes e Sargentos, patrocinada por um militar, largou seu contrabaixo num canto e abandonou o ensaio. Na hora combinada para chegarmos ao clube, ele não apareceu. Helouise, a formanda e fã da banda, nutria uma paixão especial por nosso McCartney. Quando viu o grupo desfalcado, arrancou a tiara de pérolas presa aos cabelos, jogou-a aos pés da mãe e trancou-se no banheiro feminino. Abalado com o faniquito da filha, o zeloso pai reagiu com rigor e exigiu a presença do grupo completo. E lá fomos, eu e Dodô, com a missão inadiável de trazermos seu irmão. Por sorte, a caminho da casa de seus pais, vi Bira em uma sorveteria, azarando um broto. Dorval parou a perua no meio da rua, invadiu o recinto, agarrou o irmão pelo braço, empurrou-o para dentro do veículo e vociferou: “Bixo, se tu não tocar nesta festa, eu te cago a pau”.
Ao retornarmos ao clube, o coquetel já havia sido servido, as homenagens e os discursos já haviam sido realizados. O som mecânico prolongava a espera pela atração principal. Com voz taciturna e olhar cheio de raiva, Bira anunciou-nos sua despedida definitiva da banda. Quando as cortinas do pequeno palco se abriram, disparamos From me to you. Os jovens invadiram a pista de dança, e a festa pegou fogo. Foi um show alucinante.
Juca dedicou a penúltima canção, Girl, para Helouise. O encerramento foi surpreendente, com Because, em nossa última e mais perfeita performance. Não voltamos para o bis. Quando saímos do palco, Bira trancafiou-se no camarim e despedaçou seu contrabaixo contra duas colunas de mármore.
Bah, o tempo voa, lá se foram cinquenta anos! E com frequência, quando perambulo sozinho pelo pátio, meu pensamento viaja de volta para os anos 60. Não os vejo há décadas. Pelo que sei, Xande ainda vive em Fortaleza, e Juca é dono de uma revenda de carros importados na capital. Em 70, Bira abandonou o curso de Agronomia e foi para o Araguaia. Seu corpo nunca foi encontrado. Dodô aposentou-se por invalidez. Uma prensa esmagou seu antebraço.
Eu e Helô, quem diria, estamos juntos há quase quarenta anos. Há vinte, compramos e reformamos o imponente casarão que marcou a história d’Os Barbosas. Desde então, tudo é mantido muito bem conservado, e o antigo galpão deu lugar a esta bela, magnífica piscina.
DAMASCENO, Elenilto Saldanha. Os Barbosas. In SPALDING, Marcelo (Org.). De volta aos anos 60: coletânea de contos e relatos. Porto Alegre: Metamorfose, 2022.
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