A série prossegue com a análise da presença de outros recursos cômicos linguísticos em obras do dramaturgo português Gil Vicente: a ironia, a eloquência vazia e o jargão.
Ironia
Vladimir Propp, em sua obra “Comicidade e riso”, também aborda a ironia, a qual corresponde ao uso de palavras com um determinado sentido, mas de forma que se subentenda um sentido contrário. Normalmente, a ironia reflete zombaria, cinismo, crítica sutil e incisiva. Tem caráter cômico e, ao mesmo tempo, satírico e sarcástico.
Gil Vicente recorre ao teor irônico da linguagem com agudeza de espírito e com bastante frequência. Vejamos, como exemplo, o trecho em que o Diabo faz o chamamento para o embarque no “Auto da barca do inferno”:
À barca, à barca, boa gente
que queremos dar à vela!
Chegar a ela, chegar a ela!
Muitos e de boa mente!
A personagem Diabo é essencialmente irônica e assim é, novamente, no seguinte trecho, em que se dirige à alcoviteira Brísida:
Ora entrai, minha senhora,
e sereis bem recebida…
Se viveste santa vida,
vós o sentireis agora.
Na “Farsa de Inês Pereira”, a protagonista escarnece de seu pretendente Pero Marques com sagacidade:
Eu o estou cá pintando…
Sabeis, mãe, que eu adivinho?
Deve ser um vilãozinho…
Ei-lo se vem penteando!
Será com algum ancinho?
Também no diálogo entre a viúva Inês e Lianor, desponta o cinismo irônico da mulher que finge sentimentos para corresponder às convenções sociais relativas a seu estado de viuvez.
LIANOR: Como estais, Inês Pereira?
INÊS: Muito triste, Lianor Vaz.
LIANOR: Que fareis ao que Deus faz?
INÊS: Casei por minha canseira.
LIANOR: Se ficastes prenhe, basta.
INÊS: Bem quisera eu dele casta,
mas não quis minha ventura.
LIANOR: Filha, não tomeis tristura,
que a morte a todos gasta.
O que havedes de fazer?
Casade-vos, minha filha
INÊS: Jesu! Jesu! Tão asinha!
Isso me haveis de dizer?
Quem perdeu um tal marido,
tão discreto e tão sabido,
e tão amigo de minha vida…
A ironia é empregada, também, no texto do “Auto da Índia”, notadamente ao final da peça, nas palavras da infiel Ama ao Marido:
Onde não há marido
cuidai que tudo é tristura,
não há prazer nem folgura;
sabei que é viver perdido.
A Ama, que tanto amaldiçoara o Marido, a ponto de recomendá-lo ao Demo e desejar sua morte para se ver livre dele, expressa falsa alegria ao vê-lo retornar, de forma irônica para os leitores ou espectadores cientes de seus sentimentos e de suas atitudes:
Pois que vós vivo viestes,
que quero eu de maior riqueza
Louvada seja a grandeza
de vós, Senhor, que mo trouxestes.
A nau vem bem carregada?
Eloquência vazia
Outro instrumento linguístico que serve para a comicidade é a eloquência vazia ou pobreza discursiva, ou seja, a falta de conteúdo num discurso com muitas palavras sem sentido ou importância.
No “Auto da barca do inferno”, é muito engraçada a explosão de xingamentos sem nexo proferidos pelo Parvo ao Diabo:
Hiu! Hiu! Barca do cornudo,
Pero Vinagre, beiçudo,
rachador d’Alverca, hu-há!
Sapateiro da Candosa!
Entrecosto de carrapato!
Hiu! Hiu! Caga no sapato,
filho da grande aleivosa!
Tua mulher é tinhosa,
e há-de parir um sapo
chentado no guardanapo,
neto da cagarrinhosa!
O judeu Latão irrita Inês com sua eloquência vazia neste trecho da “Farsa de Inês Pereira”:
LATÃO: Eu cuido que falo… e calo.
Calo eu agora, ou não?
Ou falo se vem à mão?
Não digas que não te falo…
INÊS: Jesu! Guarde-me ora Deus!
Não falará um de vós?
Já queria saber isso!
Jargão
Conteúdo cômico também pode ser trabalhado com o uso de linguagens específicas de um determinado grupo ou de representantes de um grupo específico. São os chamados jargões profissionais ou de casta. Gil Vicente costuma apresentar tipos bem populares e característicos, e os traços de linguagem particulares a alguns desses tipos, seus jargões, são utilizados de forma caricata e cômica.
No “Auto da barca do inferno”, o Frade realiza e narra, simultaneamente, alguns movimentos típicos da esgrima, desconhecidos ao leigo, diante do Diabo.
FRADE: Deo Gratias! Demos caçada!
Pera sempre contra, sus!
Um fendente, ora sus!
Esta é a primeira levada.
Alto levantai a espada!
Talho largo, e um revés!
E logo colher os pés,
que todo o al não é nada.
Quando o recolher se tarda
o ferir não é prudente.
Ora, sus! Mui largamente,
cortai a segunda guarda!
Guarde-me Deus d’espingarda,
mais de homem denodado.
Aqui estou tão bem guardado
como a palha na albarda.
Saio com meia espada.
Hou-lá! Guardai as queixadas.
DIABO: Oh! Que valentes levadas!
FRADE: Inda isto não é nada…
Demos outra vez caçada:
Contra, sus! E um fendente!
E, cortando largamente,
eis aqui sexta feitada.
Daqui se sai com ũa guia
e um revés da primeira:
esta é a quinta verdadeira.
Oh, quantos daqui feria!
O Corregedor usa uma espécie de Latim macarrônico em substituição a expressões comuns para se justificar e recusar o embarque na barca do inferno.
Não entendo esta barcagem,
nem hoc non potest esse.
(Isto não pode ser).
Não são peccatus meus,
peccavit uxore mea.
(Minha mulher é que pecava).
Na “farsa de Inês Pereira”, o jargão de casta é demonstrado em falas dos judeus Latão e Vidal que são, nesses casos, jargões característicos de crença e de língua:
Tu e eu somos eu?
Tu judeu e eu judeu,
não somos massa dum trigo?
Após o casamento de Inês e Brás da Mata, os judeus proclamam:
Alça manin, dona ao dono, ha!
Arrea espeçulá!
Bento Deu de Jacob,
bento o Deu que a Faraó
espantou e espantará!
Bento o Deu de Abraão!
Benta a terra de Canão!
Já no “Auto da Índia”, a própria Ama reconhece que as juras e ameaças do Castelhano são traços característicos da expressão exagerada dos homens espanhóis metidos a galantes e valentes:
CASTELHANO: Quiero destruir el mundo,
quemar la casa, es la verdad,
después quemar la ciudad;
señora, en esto me fundo.
Después si Dios me dijere,
quando allá con él me viere,
que por sola una mujer…
Bien sabré que responder,
quando a eso viniere.
AMA: “Isso são rebolarias.”
(Isto é, fanfarronadas, espanholadas, gabolices).
