O artigo sobre os instrumentos linguísticos da comicidade na obra de Gil Vicente, observados a partir de conceitos propostos pelo teórico estruturalista russo Vladimir Propp, chega ao final com a análise sobre a presença de outros recursos cômicos linguísticos em obras do escritor português: expressões grosseiras, ditados populares e alguns outros elementos.
Expressões grosseiras
Termos e expressões grosseiras, além do impacto que causam, também podem representar aspecto cômico.
É o que acontece, por exemplo, no seguinte trecho de “Auto da barca do inferno”, no qual o Parvo explica o motivo de seu óbito ao Diabo:
DIABO: De que morreste?
PARVO: De quê?
Samicas de caganeira.
DIABO: De quê?
PARVO: De caga-merdeira.
Má ravugem que te dê!
Também no “Auto da barca do inferno”, o Sapateiro recusa-se a embarcar no batel infernal e alega ao Diabo que sua devoção católica o livra da condenação, mesmo que, com frequência, profira palavrões e expressões chulas.
SAPATEIRO: E pera onde é a viagem?
DIABO: Pera o lago dos danados.
SAPATEIROS: Os que morrem confessados
onde têm sua passagem?
DIABO: Não cures de mais linguagem!
Esta é tua barca – esta!
SAPATEIRO: Arrenegaria eu da festa
e da puta da barcagem!
Como poderá isso ser?
Confessado e comungado?
Da mesma forma contraditória, apela ao Anjo:
Ora eu me maravilho
haverdes por grão peguilho
quatro forminhas cagadas
Na “Farsa de Inês Pereira”, os zelos no falar e na higiene, costumeiramente associados aos judeus, são desconsiderados na fala cômica e surpreendente de Vidal:
Foi a coisa de maneira,
tal friúra e tal canseira,
que trago as tripas maçadas.
Assi me fadem boas fadas,
que me saltou caganeira!
Grosseria explícita é encontrada, também, no “Auto da Índia”, quando a Ama ofende a Moça:
Má nova venha por ti
perra, excomungada, torta!
(Isto é, cadela, excomungada, aleijada).
Ditados populares
A referência a ditados populares e motes e a repetição de expressões e recursos do “lugar comum” que, de tão utilizados, tornaram-se banais, também conferem comicidade ao texto literário.
No “Auto da barca do inferno”, o Frade louva a Deus repetidas vezes (Graças a Deus!) em um Latim litúrgico, mas essa devoção não condiz com sua vida devassa:
Deo gratias! Sou cortesão.
Deo gratias! Demos caçada!
Deo gratias! Há lugar cá
O autor utiliza bastante o recurso de referência a ditados populares para representar a pretensa sabedoria das personagens. A citação de ditos e expressões populares é uma forma das personagens proclamarem conhecimento adquirido pela experiência de vida.
Sabe-se, aliás, que um desses motes serviu de desafio e inspiração para Gil Vicente escrever a “Farsa de Inês Pereira”:
Mais quero asno que me leve, que cavalo que me derrube.
Assim, a Mãe aconselha a filha:
Mata o cavalo de sela
e bom é o asno que me leva.
Lianor reforça o argumento da Mãe com o dito:
Filha, no chão do Couce,
quem não puder andar, choute!
E mais quero quem me adore
que quem faça com que chore.
A alcoviteira explana sobre sua amizade também através de um dito popular:
Leixemos isto! Eu venho
com grande amor que vos tenho,
porque diz o exemplo antigo
que amiga e bom amigo
mais aquenta que o bom lenho.
No “Auto da Índia”, é empregada uma expressão de indignação do tipo “lugar comum” quando o Castelhano profere:
Cuerpo del cielo con vos!
Observa-se, também, a invocação do Senhor Jesus pela Ama, repetidas vezes, quando o Marido regressa da Índia:
Teu amo! Jesu! Jesu!
Jesu! tão negro e tostado!
Jesu! eu fiquei finada;
É necessário salientar que todos esses instrumentos de comicidade podem ser utilizados de maneira simultânea, numa mesma frase ou expressão, e também podem interagir entre si e com gestos, entonações, caracterizações e situações.
Em muitos dos exemplos aqui mencionados, percebe-se a sintonia entre esses recursos, o que valoriza mais ainda a comicidade do contexto representado. A ironia permeia, nitidamente, quase todas as situações e enunciados apresentados.
Outros elementos linguísticos de comicidade
Cabe ainda citar outros elementos apropriados ao cômico, como:
a) Fisiologização: discurso desarticulado e desprovido de sentido, como os repetidos Hiu! Hiu!, hu-há, Hump! Hump! do Parvo no “Auto da barca do inferno”.
b) Rimas bem esdrúxulas, como a de Brísida Vaz no “Auto da barca do inferno”:
Peço-vo-lo de giolhos!
Cuidais que trago piolhos,
c) Expressões com cacofonia pela repetição de fonemas, como a do grupo fonêmico “per” na ação de Pero Marques oferecer peras de sua pereira para Inês Pereira na “Farsa de Inês Pereira”.
d) Erros linguísticos, como no trecho de “Farsa de Inês Pereira” em que a Mãe confunde o significado de uma palavra e pensa que vocábulo que faz referência a um sábio muçulmano é o nome de uma língua ou ciência:
Hui! E ela sabe latim
e gramática e alfaqui,
e sabe quanto ela quer!
e) Uso de nomes cômicos que caracterizam ou se opõem a traços físicos ou de personalidade, como o nome da protagonista do “Auto da Índia”, assumidamente adúltera: a personagem Ama chama-se Costança (ou Constança), nome que significa “constância, fidelidade”.
Enfim, o texto literário cômico quebra a rigidez e a previsibilidade das ações e convenções para suscitar o riso dos seres humanos em relação a si mesmos, ao mundo em que vivem e à vida que levam. Produz um riso coletivo. É assim que o teatro de Gil Vicente atingiu conceito de obra de arte canônica e universal, pois revela, com perfeição, a comicidade presente em valores e atitudes de homens e mulheres de diferentes culturas, povos e tempos.
Referências bibliográficas
PROPP, Vladimir. Comicidade e riso. São Paulo: Ática, 1992.
VICENTE, Gil. Auto da barca do inferno, Farsa de Inês Pereira e Auto da Índia. São Paulo: Ática, 1998.
