Quando perdi a cabeça?

Conto finalista

Prêmio Off Flip de Literatura 2021

Eis-me aqui, eu, que jejuava, não comia pão nem bebia vinho. Eis-me dentro de um prato de prata, embebida em um molho espesso preparado com ervas aromáticas e meu sangue derramado, rodeada por damascos, olivas e tâmaras. Separada de meu corpo. Meus olhos foram arrancados. Em seus orifícios, enfiaram as duas metades de um figo. Na boca, acostumada apenas a água, gafanhotos e mel silvestre, colocaram um cacho de uvas graúdas. Tornei-me a sobremesa principal do banquete de aniversário de Herodes.

Um servo conduz-me ao salão do palácio. A maioria dos convivas fica estupefata. Duas mulheres vomitam em seus pratos. A filha de Herodias olha para a mãe, que sorri como víbora. Um súbito silêncio impera, mas logo irrompe uma música festiva, flautas e tamborins desajeitados a cumprirem um papel ingrato.

Levam-me de volta à cozinha. Sou depositada em um saco de linho e despejada num cesto com restos de alimentos. Agora estou aqui, no pátio do palácio, num monturo de lixo. Meu último desejo é reencontrar meu corpo.

Ainda no ventre de nossas mães, eu o reconheci. Ele veio ao Jordão, eu o batizei em água e o anunciei como o Cordeiro de Deus. Eu também vi o Espírito descer do céu e pousar sobre ele e ouvi a voz do Altíssimo. Mesmo assim, eu duvidei depois.

Quando perdi a cabeça? Talvez, quando acreditei que era, de fato, o maior entre os nascidos de mulher. Ou quando percebi que meus seguidores passaram a segui-lo e enviei dois de meus discípulos para lhe perguntar se era ele aquele que havia de vir, ou se esperávamos outro. Não sei se agi por dúvida, desconfiança ou inveja.

Também não sei quem é este que me livrou do opróbrio final e me carrega, agora, nesse saco atado fortemente com um cinto de couro. Pressinto que me leva ao encontro de meu corpo e de meu descanso. Depositada em seus lombos, sinto o ritmo lento e constante dos passos da mula, o calor do sol a enfraquecer, a brisa do entardecer no deserto que logo se transformará no vento que agitará a cana.

Chegamos. Ele me retira do saco de linho e me deposita a seus pés. Profeta indigno, sem voz e sem olhos, vejo as correias de suas alparcas surradas de andarilho pobre. Vejo a cova aberta, o corpo envolto em um lençol de linho branco e ali, ao pé da cana, a tabuinha de escrever em que consigo ler… O seu nome é Zacarias.

DAMASCENO, Elenilto Saldanha. Quando perdi a cabeça? In YAMASHIRO, Olga; JÚNIOR, Ovídio Poli (Orgs.). Prêmio Off Flip de Literatura 2021: conto. Paraty: Selo Off Flip, 2021.

Disponível para aquisição em: https://www.selo-offflip.net/product-page/pr%C3%AAmio-off-flip-2021-conto

Foto por Designecologist em Pexels.com

Publicado por eleniltosaldanhadamasceno

Sou professor de Língua Portuguesa e de Literatura, jornalista e iniciei, em 2020, minhas atividades como escritor em formação e em ação. Sou mestre em Letras/Estudos de Literatura, especialista em Literatura Brasileira, graduado em Letras e em Jornalismo. Tenho 54 anos, nasci e sempre vivi em São Leopoldo/RS.

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